A Fragilidade dos Laços*




A noite se insinuava. O pôr do sol havia passado majestoso e triste. Necessitava chegar em casa. Estava exausta. Precisava alimentar o gato e os peixes. Sinal demorado aquele. Não fosse o malabarista de macacão verde, teria sufocado. A toda hora me lembrava do gato e dos peixes. O outro havia me abandonado, exatamente, no dia em que os vazios e os silêncios costumavam me apavorar. O gato e os peixes eram agora minha única família. Foi exatamente no domingo, os sinos acabavam de tocar sua última nota. O malabarista tinha o rosto cansado e me olhava. Deixou cair uma argola. Ruptura. Sorri! Esqueci o monótono de estar presa a um sinal. Esqueci a minha solidão. São tão vitais os momentos em que recuperamos a sanidade. Havia dias que não esboçava nenhum sorriso. E se o gato também me abandonasse? Restariam os peixes, decerto. Um pânico me atravessou, como pôr do sol se despedindo da tarde. O malabarista se recompôs e recomeçou a jogar as argolas com maior vigor. Fui  abandonada, tantas vezes. Por meu pai, por minha mãe e agora por ele. “Calma, os seus pais não abandonaram você, foi um acidente”. Ouço vozes. Recebi, desde então, tantos conselhos.

Não me caíram bem. Agora, prefiro vestir minha própria roupa, mesmo em situações de caos. Cheguei a achar irritante a voz de  alguns amigos para que eu me conformasse. “Tem MPB mais tarde, vamos? Você merece coisa melhor, vamos?”. Eu estava de luto, não entendiam. Ele gostava de brincar, mesmo nos momentos em que eu contava os despautérios do meu chefe. Acabava achando fundamento no seu bom humor. Fazíamos amor e conversávamos. Tão raro conversar depois de fazer amor. Alguns dormem. O que fez com que ele fosse embora, sincera mente não consigo alcançar. Tinha acabado de chegar da livraria com Clarice nas mãos e desejosa de ler os contos com ele. sugestão seria depois do jantar. Uma massa, um vinho branco e Clarice. Não houve jantar. No auge da minha euforia, vi-o na sala de malas prontas. As mesmas que trouxera. Nenhuma palavra. Meu corpo experimentou uma paralisia indescritível. Associei exatamente ao dia em que me deram a notícia do falecimento dos meus pais. Lembro-me do rosto da minha tia, e da minha professora. Nenhuma lágrima como esperado nessa situação.

Quando a porta da sala se fechou ajudada pelo vento frio que invadia a casa, corri para o quarto. Olhei a mesa de cabeceira, nenhuma palavra escrita. Vazio. Tantos elogios, tantas delicadezas... interrompo o pensamento, havia passado da hora de alimentar o gato. O malabarista me olhava fixamente. Sinal demorado. Olhei o relógio. E se o gato resolvesse comer os peixes? Impossível! O gato era manso. Passei a não confiar nos mansos. Por que a gente sempre quer pagar a conta quando perde o amor? Por que carregar a culpa do que não deu certo? Talvez tenha dado certo pelo tempo necessário, quem sabe... não sou propriamente a mulher perfeita, nunca quis ser, mas estávamos sempre um querendo agradar o outro nas mínimas coisas. Mas ele se foi, como diz Chico Buarque, com seu passo tímido. O malabarista estacionou na minha janela, indiferente aos meus pensamentos e à minha história. O show havia terminado. A conta teria que ser paga. Tateei uma moeda. Baixei o vidro. Meus olhos encontraram com o rosto do malabarista. Era belo e selvagem. Ah, estava cansado. Senti-me refletida em seu rosto. Também não sabia a história dele. Pude apenas observar a sua força depois de deixar cair a argola, tinha uma inveja em andamento, ele se reergueu, por que não levanto? Lembrei-me de que o gato tinha uma fragilidade visível. Agora anda pela casa com fidalguia quase exagerada. Entrego as moedas, o sinal abre. Olho o malabarista dobrar a esquina. Vazio. Novamente abandonada por um  desconhecido em meu show particular. Todos são desconhecidos, me dou conta. Uma buzina dispara, assusto-me! Sinal verde. Tiro o pé do freio e acelero. E se o gato resolver me abandonar? Alinho o pensamento na imagem do malabarista recolhendo a argola.







*1° Lugar no XXI Prêmio Ideal Clube de Literatura - Prêmio José Telles (2019)

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